Um ônibus da Viação Cometa perdeu os freios no quilômetro 23 da Rodovia Raposo Tavares, em São Paulo, na sexta-feira, 15 de novembro de 2024, e se chocou contra mais de dez veículos, gerando uma cena de caos que deixou 20 pessoas feridas — uma delas em estado crítico. O veículo, modelo Comil Svelto 340, seguia de São Paulo para Presidente Prudente quando, sem aviso, entrou em descontrole, tombou e espalhou destroços por toda a pista. O acidente, ocorrido às 9h17, paralisou 10 quilômetros da rodovia por mais de quatro horas, afetando cerca de 8.500 veículos durante o horário de pico. A tragédia expôs falhas estruturais no transporte intermunicipal, que transporta 1,2 milhão de passageiros diariamente no estado — muitos deles trabalhadores de baixa renda que dependem desse meio para sobreviver.
Um dia que a rodovia nunca esquecerá
Testemunhas descreveram o momento como algo entre filme e pesadelo. Um motorista de uma indústria têxtil, que preferiu não se identificar, disse à imprensa: "Era como um filme de ação, mas real. Gente gritando, crianças chorando, e ninguém sabia o que fazer." A cena no km 23 era de desespero: vidros estilhaçados, malas espalhadas, o cheiro de gasolina e o som constante de sirenes. O Corpo de Bombeiros do Estado de São Paulo mobilizou 12 viaturas e resgatou 17 pessoas ainda presas nos escombros. A vítima mais grave, uma mãe de dois filhos pequenos, foi retirada do ônibus invertido com fraturas múltiplas e trauma craniano. Ela foi encaminhada ao Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP), onde, segundo boletim médico às 18h45 do mesmo dia, permanecia em UTI, em luta pela vida.
Revisão recente? A empresa garante, mas a dúvida persiste
A Viação Cometa afirmou, em comunicado às 11h22 de 16 de novembro, que o ônibus havia passado por revisão completa em sua oficina central, na Avenida do Estado, 901, Bom Retiro, em 10 de novembro — apenas cinco dias antes do acidente. O diretor de operações, Carlos Eduardo Mendes, disse que "todos os sistemas de frenagem foram testados e aprovados". Mas especialistas apontam: revisões podem ser superficiais. O professor Roberto Carlos Pires, da Escola Politécnica da USP, lembra que muitas empresas cortam custos em manutenção preventiva, especialmente em frotas que rodam mais de 100 km por dia. "A revisão não é garantia de segurança se não for técnica, documentada e acompanhada por inspeções aleatórias."
Investigação em andamento: negligência ou falha técnica?
A Polícia Rodoviária Federal (PRF) abriu investigação na Delegacia de Cotia, com prazo de 30 dias para conclusão, conforme o Artigo 150 do RAVIT. O delegado federal Luiz Fernando Gonçalves já antecipou que, se for comprovada negligência — como manutenção fraudulenta ou uso de peças falsificadas —, a empresa pode responder criminalmente. A análise dos registros do sistema de telemetria do ônibus e a inspeção do freio pneumático estão em andamento. Curiosamente, o veículo foi fabricado em 2021 pela Companhia Integrada de Máquinas e Ônibus (Comil), uma empresa catarinense com histórico de qualidade, o que afasta a hipótese de defeito de fábrica. A suspeita, então, recai sobre o uso e a manutenção pós-venda.
O sistema que falha enquanto o povo paga o preço
Na prática, o acidente não é um acaso. Nos primeiros dez meses de 2024, a PRF registrou 238 acidentes fatais envolvendo ônibus intermunicipais em rodovias paulistas — um aumento de 18% em relação ao mesmo período de 2023. O transporte rodoviário é o principal meio de mobilidade para 62% da população da Grande São Paulo que não tem acesso a transporte público de qualidade. Mas, segundo dados da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), apenas 31% das empresas de ônibus intermunicipais passam por inspeções não programadas. "É como confiar no motorista que nunca troca o óleo do carro e depois se espanta quando ele quebra na estrada", diz Pires. A ANTT, sob pressão pública, anunciou fiscalizações emergenciais em todas as 47 linhas da Viação Cometa, com início em 18 de novembro e conclusão prevista para 30 dias úteis.
Consequências que vão além da pista
O impacto econômico já é visível. Pelo menos 15 trabalhadores não compareceram ao serviço nos dias seguintes ao acidente — alguns por ferimentos, outros por medo de viajar. Indústrias da região metropolitana confirmaram demissões por ausência injustificada. Já no Fórum Regional de Butantã, foram protocolados sete processos coletivos por familiares das vítimas, buscando indenizações que podem chegar a R$ 500 mil por caso grave, conforme jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo. O Ministério Público do Estado já solicitou todos os documentos da PRF para avaliar possíveis danos coletivos ao direito à mobilidade segura. A Viação Cometa, por sua vez, suspendeu temporariamente o uso do modelo Comil Svelto 340 em sua frota, mas ainda não anunciou compensações aos passageiros afetados.
O que vem a seguir?
Se a investigação da PRF confirmar negligência, a Viação Cometa pode perder sua licença operacional. A ANTT já sinalizou que, caso a empresa não apresente plano de recuperação de segurança, poderá ser suspensa de forma definitiva. Paralelamente, deputados estaduais anunciaram a criação de uma comissão especial para revisar as normas de manutenção de frotas intermunicipais — algo que não é atualizado desde 2017. O governo do estado, por sua vez, prometeu acelerar a implantação de câmeras de monitoramento em pontos críticos da Raposo Tavares, mas sem prazo definido. Enquanto isso, passageiros que antes viam o ônibus como um meio de sobrevivência agora olham para ele com medo. E não sem razão.
Frequently Asked Questions
Por que o acidente aconteceu se o ônibus havia sido revisado recentemente?
A revisão feita em 10 de novembro pode ter sido superficial ou fraudulenta. Muitas empresas usam certificados falsos ou não realizam testes reais nos sistemas de freio. A Viação Cometa afirma que o veículo estava em ordem, mas a falta de registros digitais acessíveis ao público e a ausência de inspeções aleatórias por órgãos reguladores deixam dúvidas. A investigação da PRF analisará os dados do sistema de telemetria para confirmar se os freios realmente foram testados.
Quem é responsável legalmente pelo acidente?
A responsabilidade pode recair sobre a Viação Cometa, caso se comprove negligência na manutenção, ou sobre o mecânico que realizou a revisão, se houver indícios de fraude. O fabricante, a Comil, não é suspeito, pois o ônibus é novo. A PRF também investiga se houve pressão por parte da empresa para manter o veículo em operação mesmo com sinais de falha — o que configuraria crime contra a segurança pública.
Como isso afeta os passageiros que dependem desses ônibus?
Mais de 1,2 milhão de pessoas usam ônibus intermunicipais em São Paulo diariamente — muitas delas são trabalhadoras da periferia, idosos e estudantes. A perda de confiança nesse sistema pode forçar pessoas a buscarem alternativas mais caras ou perigosas, como caronas não regulamentadas. O acidente não só feriu corpos, mas também minou a segurança psicológica de quem depende do transporte público para sobreviver.
Por que a ANTT só agiu após o acidente?
A ANTT tem poder de fiscalização, mas depende de denúncias ou de acidentes graves para agir. Em 2023, apenas 12% das empresas de transporte intermunicipal foram fiscalizadas por amostragem. O sistema é reativo, não preventivo. O acidente expôs uma falha institucional: a falta de inspeções aleatórias e a burocracia que permite que empresas continuem operando mesmo com histórico de risco.
O que os passageiros podem fazer para se proteger?
Verifique se o ônibus tem o selo de inspeção vigente no painel interno. Evite viajar em veículos com sinais de desgaste nos freios — como cheiro de queimado ou barulhos metálicos. Denuncie irregularidades ao Disque 165 da ANTT ou ao 190 da Polícia Militar. O direito à segurança não é privilégio: é um direito constitucional. Mas só vale se for exigido.
Há precedentes desse tipo de acidente em São Paulo?
Sim. Em 2022, um ônibus da Viação São Luiz tombou na Via Anchieta com 18 feridos por falha nos freios — e também havia passado por revisão recente. Em 2020, outro acidente na Raposo Tavares, envolvendo um ônibus da Viação Ouro Verde, deixou 12 mortos por manutenção negligenciada. Os mesmos erros, repetidos. A diferença agora é que a mídia e a sociedade não estão mais dispostas a aceitar esse ciclo de tragédia e silêncio.
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